
Pense no dinheiro que você recebe todo mês pelo seu trabalho e multiplique-o por três. Parece bastante, não é? Agora pense que você vai ao supermercado e esta quantia é o preço de um espumante. Apenas um, sim. Seu salário repentinamente encolheu e você se sente um completo intruso ali, mesmo estando no bairro onde mora.
Imagine, agora, sentada na escada de acesso a esse supermercado, uma mulher pedindo esmola com uma criança de colo nos braços. Pessoas entram e saem do local. Um segurança ao lado da porta, imóvel feito uma esfinge.
A mulher também parece imobilizada. Só de vez em quando se mexe, ora para mudar a posição da criança, ora para guardar algum dinheiro -ou qualquer outra coisa- que alguém deixe para ela. “Vai com deus”, ela diz no seu momento de maior expressividade, e volta à lentidão da sua jornada.
Esta é a cena que mais me impressionou em 2002, recém-chegado a São Paulo, por reunir tantos elementos de um coquetel explosivo sem que, porém, houvesse qualquer sinal de conflito. Nos anos seguintes iria testemunhar inúmeros outros casos de violência semelhante, sempre com a desconfortável sensação de fazerem parte de uma ordem tida como natural, que não se discute, tal como a chuva ou o sol.
Claro que os contrastes têm uma cara divertida também, como a antena que uma igreja colocou na Paulista com a Consolação para emitir mensagens bíblicas no topo, enquanto no térreo dividia espaço com um sex-shop e um bar gay. Ou os camelôs ao lado dos cinemas da Rua Augusta oferecendo filmes que ainda nem haviam estreado na sala comercial.
Pulsa nessas cenas o ritmo descontraído do “tudo bem, tudo bom” com que a cidade abriga a diversidade.
Mas em se tratando de algo mais “sério”, logo aparece um complexo de elipses e metáforas para eliminar incômodos e preservar a cordialidade.
No Rio você vai ouvir: “somos democráticos por natureza, olha a orla aí”, querendo dizer com isso que a praia é onde todos se tornam instantaneamente “iguais”, e que essa suposta igualdade é a base da democracia. “Racial, econômica, cultural”, reforçam, como um mantra tranquilizador diante daquilo com o que, de outra maneira, seria traumático lidar.
São Paulo tem seus próprios amaciantes semânticos. Quando um atendente diz “(o produto tal) está em falta” ao invés de um franco “não temos”, está lançando mão destes recursos. Quando a publicidade enfatiza que as parcelas infinitas de um crédito “cabem no bolso” sem dizer claramente que o cliente vai pagar mais de 250% de juros pelo cheque especial, está fazendo a mesma coisa.
Até o jornalismo participa dessa construção de sentido. Certa vez, em uma reunião com estrangeiros, o editor de um importante veículo comentava: “evitamos o termo ‘não’ nas matérias e, principalmente, nos títulos. No Brasil afirmamos. Tudo tem que estar no modo assertivo”. Um modo propositivo de comunicar, inclusive a negação.
Tenho dito várias vezes que uma das coisas de que mais gosto daqui é o otimismo. Nas horas difíceis, as pessoas falam “vai dar tudo certo”. Quando algo não está funcionando, aconselham “deixa para lá”. Às vezes isto significa que “vai acabar em pizza”, mas tudo bem. A felicidade, como metaforizou Tom Jobim, “precisa que haja vento sem parar”.
O fato é que sempre há como amenizar tudo, mesmo quando a língua atinge seus limites. Se não há jeito em português, lança-se mão de outro idioma. Do inglês, por exemplo, como foi com “impeachment”. Fora de considerações constitucionais, esse termo é bem mais cordial do que aquele outro que, por não ser belo, recatado nem do lar, passou a ser de domínio das ruas a partir de maio de 2016.
Por Carlos Turdera
Correspondente da revista espanhola Dirigentes, mora em São Paulo desde 2002. Trabalhou para La Nación, Folha de S.Paulo, Terra, Gazeta Mercantil.